O atual embate entre o Presidente Joe Biden, e as lideranças republicanas no congresso acerca da questão do teto da dívida, demonstra o perigo da polarização política e o profundo impacto que tais disputas podem ter sobre a economia
por Victor Stilita
O risco associado a quebra do teto de dívidas é alvo de discussões e confrontos entre as frentes políticas dos
Estados Unidos / Imagem: wirestock no Freepik
A humanidade sempre conviveu com períodos de grandes mudanças políticas, a proliferação de grupos radicais após períodos de crise ou após períodos de calmaria política e pragmatismo é praticamente uma constante há séculos nas mais diversas sociedades. A metade da década de 2010 marcou mais um ponto de virada política global, com grupos radicais surgindo e ganhando força nos mais diversos países ao longo da década.
Em 2016, Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA; em 2017, Marine Le Pen chega ao segundo turno das eleições presidenciais francesas e o Alternative für Deutschland (AfD) se torna o primeiro partido de extrema-direita desde o final da segunda guerra mundial a conquistar assentos no Parlamento alemão e, em 2018, Jair Bolsonaro, deputado do baixo clero sem nenhuma expressão política há quase 30 anos, foi eleito Presidente da República no Brasil.
A emergência dessas figuras populistas trouxe, em conjunto, uma miríade de outros atores (alguns muito piores do que as figuras que os inspiram) que, em circunstâncias normais, seriam relegados à categoria de políticos irrelevantes sem capacidade de serem eleitos. Para tanto, esses novos atores, apesar de representarem uma parcela pequena do total de um parlamento razoavelmente diverso ideologicamente, possuem uma grande capacidade de sequestrar o discurso para tentar impor sua visão, muitas vezes em detrimento dos próprios partidos e, principalmente, do próprio país que eles bradam aos quatro ventos amar mais que os demais.
Tal situação não poderia ser mais claramente evidenciada do que nas presentes negociações para elevação ou suspensão do teto da dívida dos Estados Unidos. Nesse contexto, o teto da dívida dos EUA é um limite legislativo sobre o montante total da dívida pública federal que o governo americano pode assumir. Criado em 1917, desde 1960 alterações no teto da dívida já ocorreram 85 vezes (78 aumentos e 7 suspensões), sendo a mais recente em 2021 e, atualmente, o teto da dívida americana se encontra em US$31.4 trilhões (aproximadamente 124% do PIB dos EUA ao final do ano fiscal de 2022).
Para se entender a importância do aumento do teto da dívida, é necessário entender que uma das principais formas de financiamento do déficit orçamentário de um governo é por meio de empréstimos contraídos por meio de emissão de dívida, ou seja, emissão de títulos de dívida pública do tesouro que pagam juros ao final do processo de maturação. A dívida pública de um país é a soma dos valores emprestados mais os juros devidos sobre o valor emprestado. Com isso, em virtude do crescente descompasso entre receitas e despesas, para o governo americano poder realizar os gastos orçamentários de cada ano, ele precisa se endividar continuamente e, para tal, ao se aproximar do teto da dívida, precisa elevá-lo para um novo patamar ou suspendê-lo temporariamente.
A data em que o governo americano irá atingir o teto da dívida e, portanto, não poderá mais se endividar para cumprir com suas despesas é chamado de “X-Date” e, segundo cálculos do Departamento do Tesouro Americano e do Escritório de Orçamento do Congresso, esta data seria o dia 1º de junho.
A associação entre a questão do teto da dívida americana e a polarização política se encontra precisamente na dimensão da problemática e as consequências políticas para todos os atores envolvidos na questão. Tradicionalmente, o aumento do teto da dívida era uma questão sem grandes dificuldades atreladas, devido à sua grande importância e as grandes consequências que ocorreriam caso o limite não fosse alterado, entretanto, desde o início da década de 2010, em virtude da crescente polarização entre Democratas e Republicanos, a questão do aumento do teto da dívida foi vista pela oposição do momento como uma importante arma política para avançar sua agenda e até mesmo demonstrar poder e força política sobre a situação.
Para tanto, o primeiro grande embate sobre a questão do teto da dívida se deu em 2011, quando membros de um grupo do Partido Repúblicano chamado Tea Party se opuseram ao aumento do teto da dívida sem contrapartidas orçamentárias e, desde então, os EUA tiveram mais três crises políticas do teto da dívida, 2013, 2021 e a atual em 2023. A mais recente crise do teto da dívida se situa em um dos momentos de maior polarização política nos EUA desde a guerra de secessão de 1861, com as pautas do Congresso praticamente sequestradas por um grupo pequeno de deputados republicanos associados ao ex-Presidente Donald Trump.
Os dois lados envolvidos na questão não aparentam dispostos a ceder em suas convicções e demandas, com o Presidente Joe Biden demandando um aumento no teto da dívida sem contrapartidas e os Republicanos, liderados pelo speaker Kevin McCarthy, demandando cortes de gastos e retração de programas sociais em troca de um aumento do teto. O cálculo político realizado por ambos os lados para justificar a irredutibilidade de suas posições aparenta desconsiderar a grandiosidade das consequências de um possível default da dívida pública caso o teto não seja elevado, ou ainda as consequências de uma incapacidade do financiamento das despesas correntes e orçamentárias decorrentes de um não aumento do teto da dívida.
Segundo estimativas do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca e laboratórios de ideias privados, um default curto levaria a uma retração de 0.5% do PIB e um aumento de 0.3% no desemprego (aproximadamente 500 mil novos desempregados) enquanto que um default longo levaria a uma retração de 6.1% do PIB e um aumento de 5% no desemprego (aproximadamente 8.3 milhões de novos desempregados).
Os impactos de uma aproximação da “X-Date” já podem ser sentidos na economia, com indicadores de estresse econômico apresentando crescimento acentuado. As consequências globais dessa falta na dívida pública americana, pela primeira vez na história, mesmo que curto, seriam catastróficas.
A disputa atual acerca do aumento do teto da dívida pública dos EUA evidencia que a crescente polarização política praticamente transformou o ato de governar no ato de continuamente tentar ganhar de seus oponentes. E assim, as consequências das ações (ou inações) vêm sendo sumariamente ignoradas em prol de uma vitória em cima “do outro lado”, sendo o objetivo final das decisões e posicionamentos a derrota do grupo oposto, cenário que não melhora do bem-estar nacional e não aborda um planejamento de situação menos problemática.
Revisão de Texto: Paulo Roberto Maciel
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