Recém adicionada ao catálogo da Globoplay, a produção retoma fatos passados há mais de 50 décadas desde do episódio do "descobrimento do Brasil", mas que ainda refletem nossos comportamentos atuais.
por David Andrade
Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500 / Oscar Pereira da Silva (Óleo sobre a tela)
Em 22 de abril de 1500, o navegador português Pedro Álvares Cabral foi protagonista de um evento que, durante todo o meu ensino fundamental, foi chamado de "Descobrimento do Brasil". Recordo perfeitamente de meus professores, do 1º ao 9º ano, se unirem ao coro de pessoas que ensinavam que Cabral, navegando em busca de uma rota às Índias, avistou um elevado de terra que foi nomeado de Ilha de Vera Cruz, o que anos mais tarde se tornaria a nação Brasil.
Os ocorridos daquele último ano do século XV foram apenas o pontapé inicial de mais de 300 anos de exploração portuguesa na América do Sul. Tal exploração não se deu apenas dos recursos naturais (como pau-brasil, ouro, café e cana-de-açúcar), mas de recursos humanos também. Antes mesmo dos negros africanos atravessarem o Oceano Atlântico na condição de escravizados e chegarem a uma nova terra onde seriam brutalmente torturados e obrigados a exercer trabalho forçado, populações originárias foram submetidas a todo tipo de condições sub-humanas nas mãos dos colonizadores portugueses.
Na região da capitania de São Vicente, os colonizadores encontraram na questão geográfica sua maior dificuldade: transpor a Serra do Mar. Hoje, para quem sai de Santos em direção a cidade de São Paulo, pode optar pela Rodovia dos Imigrantes, tanto na ida quanto na volta. Mas quase 500 anos atrás, o caminho para se chegar até a então Vila de São Paulo, localizada acima da Serra, no chamado Planalto Paulista, se dava através de estradas íngremes, tortuosas e extremamente perigosas. Para isso, homens chamados de "bandeirantes" exerciam a atividade de sertanismo, penetrando no interior do país em busca de minérios e para recrutar povos nativos para o exercício de trabalho escravo. É neste contexto que Maria Adelaide Amaral desenvolve os 51 capítulos da minissérie "A Muralha", livremente baseada no romance de Dinah Silveira de Queiroz, exibida pela TV Globo entre janeiro e março de 2000 e recentemente disponibilizada na plataforma Globoplay.
Lembro-me de que nas aulas de história, os bandeirantes eram tratados como os grandes heróis do desbravamento do Brasil. Na cidade de São Paulo é possível ver logradouros e monumentos que homenageiam esses homens que se dedicaram em expedições para a expansão do território português para além do Tratado de Tordesilhas.
Em 'A Muralha', as coisas não são tão boas assim. Já no primeiro capítulo, o telespectador é testemunha de uma tentativa malsucedida de abuso sexual por parte de um dos criados de Bento (Caco Ciocler) contra uma mulher nativa e de sequestros de adultos indígenas pelo bando de Dom Braz Olinto (Mauro Mendonça).
Alessandra Negrini e Mauro Mendonça como Isabel Olinto e Dom Braz Olinto em 'A Muralha'
/ Reprodução: Rede Globo
Mesmo retratando um período onde o Brasil ainda era intocado, a minissérie, por obrigação dramatúrgica, precisa eleger seus protagonistas para suas tramas folhetinescas. Tal atribuição recaiu sobre três personagens femininas: Beatriz Ataíde (Leandra Leal), que vem de Portugal para dar prosseguimento a um casamento arranjado com seu primo Tiago Olinto (Leonardo Brício); Isabel Olinto (Alessandra Negrini), que vive um triângulo amoroso com Beatriz e Tiago, sendo a única mulher a participar das operações de sertanismo e considerada a melhor soldado de Dom Braz; e Antônia Brites (Cláudia Ohana), responsável pelo 'núcleo cômico' da obra, uma mulher de meia-idade que atravessa o mar com o objetivo de encontrar um pretendente nas terras recém "descobertas" (em 'descobertas', leia-se 'invadidas').
Mesmo com todas suas qualidades, é inegável o quanto é impossível que a minissérie faça uma leitura completamente fidedigna àquele tempo passado, mas ainda assim podemos ter uma noção dos males iniciais que a colonização portuguesa trouxe para estas partes de terras sul-americanas. 523 anos depois, ainda é perpetuado o termo "Descobrimento do Brasil"; Pedro Álvares Cabral ainda recebe louros por seu feito; os bandeirantes Raposo Tavares e Fernão Dias ainda nomeiam importantes rodovias da Região Sudeste do Brasil. A história dos considerados "vencedores" ainda é a mais propagada, enquanto as vítimas do genocídio causado por Portugal são varridas para debaixo do tapete.
Em mais de 500 anos, nada aprendemos. Quantos Galdino Pataxó ainda serão assassinados por diversão, em atos que lembram o terrível bandeirante Anhanguera? Em 523 anos não aprendemos nada. Ainda há quem culpe os Ianomâmi pelo extermínio sofrido por eles mesmos durante o Governo Bolsonaro. Mais de 500 anos se passaram e parece que ainda vivemos na mesma época de 'A Muralha'.
Revisão de texto: Paulo Roberto Maciel
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